Muito prazer, meu nome é outono.

19.7.10

Ele a ama como só se ama uma vez na vida, ela também.

Tudo começou no Ginásio Bom Lustrosa – colégio e internato católico –, localizado na cidade de Patrocínio, em Minas Gerais. Era lá que ele estudava e pretendia completar o primário. Teria um ótimo futuro e muito dinheiro. Era batalhador. Tudo andava nos trilhos, até que – após um ano de curso – anunciaram o fim do internato, e, assim, os alunos não poderiam mais passar o dia e a noite na escola.

Ele morava na roça, não teria condições de ir e voltar todos os dias para a sua casa. Confessa que ficou desesperado, pensou em desistir. Mas não antes de tentar. Explicou a situação para um amigo que, por carta, pediu moradia para ele na casa de alguns conhecidos. Essas pessoas ofereceram abrigo, ele aceitou. E foi assim que a conheceu. Uma amiga de um amigo dele.

A vida dela era pacata. Pacata não, maçante. Não estudava, não tinha grandes ambições, não sonhava com o amor eterno. Só queria ficar ali, ajudando a mamãe e o papai. Bem ali, na pequena cidade de Patrocínio. Confessa que a vida continuou, por anos, a mesma. Um dia após o outro, e ninguém sempre. Até ela passar a ver com outros olhos o menino humilde que pedira abrigo em sua casa... Muito depois de ele ter começado a vê-la com outros olhos.

Ele se apaixonou, e sabe exatamente o momento em que isso aconteceu. O pai dele acabara de falecer, e o mundo inteiro parecia adorar tocar no assunto. Queriam saber como ele se sentia sobre isso, se precisava de algo, como foi, quando foi. Mas ela não. Ela perguntava se estava tudo bem, e conversava com ele sobre tudo – menos isso. Conversaram sobre o tempo, sobre a vida, sobre os poetas, contaram piadas, riram. Ela o tratou como ele precisava ser tratado, e ele tem certeza de que foi isso que o ajudou a superar a morte do pai. Ela era diferente.

Ela achou nele um grande amigo em uma péssima ocasião. A morte do pai o deixara arrasado. Ela não sabia exatamente como ajudá-lo, mas não conseguia ficar parada. Tentava distraí-lo, contar piadas, rir um pouco. E, aos poucos, aquele menino calado do interior tornou-se um grande amigo. Aos poucos, um confidente. Aos poucos, indispensável. Ele era diferente.

Mais dia, menos dia, ele perguntou a ela se acreditava ser possível amar em menos de seis meses. Ela disse que não, que amor, amor mesmo, leva tempo. Ele deixou pra lá. Vai ver aquilo lá não era amor, amor mesmo. Era só o coração acelerando, a barriga sentindo frio, os sorrisos saindo sem querer. Era só o arrepio na espinha toda vez que os olhares se cruzavam. Vai ver nem era amor. Vai ver, ele estava exagerando.

Vai ver não.

Passaram-se anos, e toda essa sinestesia de sensações continuava lá. Toda vez que, sem querer, as mãos se encostavam. Em cada esboço de sorriso, em cada risada exagerada. Ele a amava sim... Mas ela nem percebia nada.

Passaram-se anos desde aquela primeira vez na qual ele perguntou, para ela, sobre amor. Aquela pergunta repetida periodicamente. Ela não era boba, entendia o motivo, mas não queria acreditar. Ele a amava sim, e nem percebia que ela percebia tudo.

Nesse meio tempo, a amizade aumentou. Ela enfeitava-se para sair e perguntava a ele se estava bonita. Ele dizia que sim, é claro... Mas ficaria muito melhor sem os brincos. As conversas eram longas, o assunto não acabava. E, se acabava, não era incomodo. Compartilhavam experiências. Ele tinha ambições, planos para o futuro. Ela, no começo, não. Mas aos poucos ele passou para ela essa paixão pelo desconhecido, essa vontade de viver. A vida não era mais a mesma. Eram ótimos amigos. Mas esse não é um conto de amizade. Tá mais pra epopéia de amor.

Os dias foram passando, e acabaram-se quatro calendários desde que ele pisara na casa dela pela primeira vez. Estava quase na hora de ir embora.

Ele não aguentava mais guardar aquele segredo, parecia que ia explodir. Resolveu contar. Mas quando? Como? Onde? Começou devagar. Perguntou a ela como fazer para conquistar uma moça mais velha. Ela entusiasmou-se com a ideia, pediu a ele que contasse tudo, ela o ajudaria. Ele disse que não podia contar. Ela insistiu. Ele negou novamente. Ela insistiu mais um pouco...

Não se sabe como, mas ficou decidido que no dia 27 de novembro ele revelaria seu segredo. Faltariam, então, apenas oito dias para a festa de formatura. Se ela não correspondesse, seria uma tortura breve. E ele, então, iria embora para sempre.

O tão temido e esperado dia 27 de novembro foi, no mínimo, mágico – mas não pela sua essência. Ele a convidou para ir ao cinema, ela aceitou. Eles caminharam um pouco depois disso. Um mero programa de namorados, ainda que não o fossem. A magia estava nas palavras intrínsecas, na respiração afobada. A magia estava naquilo que não se pode imaginar – só se sente caso você faça parte daquilo.

Ele tentou contar várias vezes, ela desconversava. Tinha medo da verdade. Medo de se entregar, de assumir o compromisso e, assim, perder o seu melhor amigo. Ele queria arriscar.

Voltaram para casa. Ele não disse o que queria dizer, mas escreveu. Entregou para ela uma carta linda, repleta de sinceridade. Disse a ela para ler quando estivesse pronta.

Ela não leu quando estava pronta, era curiosa demais para esperar. Confessa que, até hoje, não leu algo tão bonito assim. Ele confessava amá-la “como se ama apenas uma vez na vida”. E era verdade. Ela podia sentir a honestidade nas entrelinhas.

Infelizmente, ela não soube lidar com isso. Ficaram brigados por cinco dias. E, na formatura, ela não quis dançar com ele. Passados os cinco dias, entretanto, ele a pediu em namoro. Ela aceitou, eles se beijaram... Mas a despedida chegou rápido.

Não se viram por muito, muito tempo. As cartas, entretanto, eram diárias. O carteiro até já os reconhecia. Namoro à distância é difícil, muito difícil mesmo. Ainda mais naquela época... Tenho certeza de que, até hoje, o casal agradece pela invenção das cartas. Simples, escritas à mão. Foram elas que os colocaram juntos e, ainda mais importante, os mantiveram juntos.

Ele era muito bonito. E as biscates da época não respeitavam o amor incondicional que ele carregava dentro de si. Caíam em cima. Mas ele nem dava bola. O coração era de outra. Outra não, uma. Dela, só dela. Infinitamente.

Ela era taxada de boba, ingênua. Não era raro avisarem que ele não voltaria para se casar com ela. Era um rapaz bonito, tinha todo o futuro para sempre. Não ia voltar para uma moça não letrada, do interior de Minas Gerais. Mas ela acreditava nele. Indiscutivelmente.

Cartas e mais cartas, juras de amor, promessas... Distância.

A distância foi muita e por muito tempo. Ele estudou em Uberaba, em Ouro Preto, trabalhou na roça por alguns meses. Até que arranjou um emprego em Belo Horizonte. Durante todas essas cidades, foram cinco anos de história. Cinco anos de carta. Eles se viam muito pouco, e se amavam num amor que não pode ser mensurado em quilômetros.

Não moraram mais na mesma cidade, até que ele a pediu em casamento. Ela aceitou de imediato, tinha certeza de que era com ele que queria passar o resto da vida. Casaram-se. Viajaram de trem na lua de mel (sonho dela, desde a infância) e mudaram para um barraco em Belo Horizonte. Não era muito, mas era o que podiam pagar. O amor tomava conta do resto.

Tiveram sim brigas, crises de ciúmes, choros, velas, falta de dinheiro, aluguel atrasado, impostos, filhos chorando de madrugada... Mas, no fim, deu tudo certo.

Às vezes, tenho certeza, gostariam que alguém tivesse lhes contado que daria tudo certo. Tinha dia que faltava de tudo... Mas amor? O amor transbordava. Superaram tudo, e o amor ficou.

Quarenta e sete anos depois, Ele a ama como só se ama uma vez na vida. E ela também.

***

Ele e ela são Pedro e Tita. Meus avós. Casados, hoje, há quarenta e sete anos. Pais de cinco filhos, avós de cinco netos.

Fico orgulhosa de contar que ainda se olham com carinho, sorriem com ternura, completam as frases um do outro. Ele a deixa maluca, ela o irrita até cansar... Só pra provar que, no fim, ele é Romeu, ela é Julieta. Ele é queijo, ela goiabada.

(Gabriela quer um amor assim)

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