Muito prazer, meu nome é outono.

21.7.11

Dee-ane Arbus

Estava lá, a descansar na grama. Um cachorro deitado, apenas. E todos o fotografavam. Talvez fosse bonito... Ou, quem sabe, aquilo tivesse alguma importância. Não saberia dizer. Eu, particularmente, jamais fotografaria um cão descansando no gramado.

Não me entenda mal, até gosto de cachorros... O grande problema, é que retratos desse tipo não tem mistério algum. E, ultimamente, tenho percebido como realmente amo o que não pode ser visto numa fotografia. Entende? Sei que a compreensão é difícil, mas, por favor, tente. Uma foto não está completa sem segredos. Laços entre fotógrafo e sujeito. Vínculos impassíveis de explicação. Quando me encara – a socialite, ou o travesti – não capturo somente os olhos: Roubo-lhe o olhar. E, por isso, a fotografia é necessariamente cruel. Vil. Exponho a alma de outros para sobreviver. Felizmente, redimo-me expondo também a minha.

Cada retrato de outra pessoa um autorretrato. Fotografo o que sinto por dentro naqueles que o sentem por fora. Freaks, vocês dizem. Esquecem-se, no entanto, de que o sujeito é muito mais importante que a fotografia... E mais complicado. A maioria das pessoas passa pela vida com medo de ter uma experiência traumática. Os freaks nasceram banhados pelo trauma. Já passaram por esse teste na vida. São aristocratas. Doloroso, dizem vocês. Eu digo interessante. Horripilante? Fantástico.

Só queria a compreensão do espectador de minhas imagens. Não fotografo freaks. Não sou a fotógrafa dos freaks. Apenas, é claro, que se considere meus retratos no nível mais cru. Anões, prostitutas, travestis, gigantes, idosos, deficientes, nudistas... Norte Americanos. Eu acredito que há coisas que ninguém veria se não fossem fotografadas. Também acredito que quanto mais específica eu for, mais geral o retrato será. Anões, prostitutas, travestis, gigantes, idosos, deficientes, nudistas... Pessoas.

Só procuro mostrar o que algumas pessoas gostariam de ver, de conhecer. Mas não podem. Já fui uma dessas, confesso. Nasci em família abastada, fui proibida de fitar o estranho. E, por isso, posso falar – fora de todos os clichês: Dinheiro não é tudo. As crises depressivas que me acompanham desde a infância não me deixam mentir.

Allan Arbus foi o que me salvou – mas não pelo sobrenome, tampouco pelo casamento. A fotografia foi quem me resgatou. No início, era moda. No início, éramos nós – Allan e eu. Ele assinava, eu trabalhava.

Depois do divórcio, mantive somente o sobrenome e o gosto pela fotografia. Foda-se o Allan. E foda-se a Vogue.

Nada contra fotografias de moda – acho que falta-me simpatia pela convivência com elas desde pequena. O que mais gosto de fazer é ir a lugares onde nunca estive. Acho que isso explica também os freaks. Todos sofrem da limitação de ser uma pessoa só. Procurei-me neles, e outros temas fascinantes. O suicídio, por exemplo. Uma pena nunca ter podido fotografá-lo.

Estava lá, o suicídio. Nas faces de Marilyn Monroe e Ernest Heminghway. Estava ali. Isso, ao meu ver, é o mais digno de ser fotografado. Segredos. Intimidades. Eu, neles.

(Diane Arbus suicidou-se no dia 26 de julho de 1971, com cortes nos pulsos e uma dose letal de barbitúricos).

***

A Diane Arbus foi uma das mais importantes fotógrafas do século XX e se você não conhece, deveria. Veja algumas fotos dela aqui.


5.7.11

Esconde-esconde

- Monstros, Cecília, não se escondem embaixo da cama. Corpos, sim. – Rafael disse com calma, logo antes de acender um cigarro.

- Você me ajudaria? – completou.

- Com o que?

- Sim, ou não?

- Depende.

- Eu te ajudaria...

Conheço Rafael há quase 20 anos, mas nos últimos meses, ele anda um pouco... Reservado, quase apreensivo. Como se tivesse algo a esconder – mas, ao mesmo tempo, quisesse ser descoberto.

- Acho que já vou.

- Mas tão cedo? Ia preparar pra gente aquele bife acebolado que você tanto gosta... Colocar o disco do U2, sabe? Aquele da música Sunday bloody Sunday... – falou, com calma.

- Ok.

- Você não está pra conversa hoje, né?

- É o trabalho...

- Sei.

Levantou-se da cama e olhou-me de frente, senti os olhos azuis com força, dentro de mim.

- Vou pegar algo pra beber. Quer alguma coisa?

- Não.

Voltou com duas cervejas.

- Sabe, Cecília... Você é a pessoa com quem eu tenho passado mais tempo ultimamente. E nos conhecemos há tantos anos... Gosto de ti. Bastante.

- Obrigada. – e completei – Eu também gosto de você...

- Sei... Eu sei.

Acendi um cigarro, dei um gole na cerveja. Subitamente, tive necessidade de me explicar, de inventar desculpas pela falta de culpa, pelo excesso de des.

- Olha, Rafael, tô meio esquisita esses dias. A faculdade ta apertando e...

- O trabalho.

- Perdão?

- Não a faculdade, querida, o trabalho.

- Ah, sim, claro... O trabalho também...

- Sei.

Mais um gole na cerveja. Ele me acompanhou, e logo em seguida...

- Você confia em mim, Cecília?

-... Claro.

- Tem certeza?

- Quero dizer, eu te conheço há vários anos... Seus pais, seus avós. Estava lá nos dias mais importantes da tua vida, seu primeiro casamento, seu segundo divórcio... Sou madrinha do seu filho...

- Eu sei. Mas você confia em mim?

-...Claro.

- Certo.

Rafael foi, por muito tempo, meu único e melhor amigo. Costumávamos ir juntos a todos os lugares, sem obrigação de conversar... E então, repentinamente, acabou. Como se fossemos namorados. Não sei se isso partiu de mim ou dele... Mas, provavelmente, deve ter sido qualquer outra coisa.

- Vem, vamos começar a cozinhar. – ele disse.

Rafael colecionava facas. Tipos, tamanhos, formatos. O engraçado, é que não serviam apenas para uso culinário. Três do tipo Bowie, cinco facões de mato e, é claro, as suas queridas facas táticas e de combate. Todas guardadas ali, naquela terceira gaveta.

- Me ajuda a cortar?

Ele disse, mas não esperou a minha resposta: jogou para mim uma faca de chef. Excelente. Essa serve para quase tudo, lâmina larga, de 27 cm, com a ponta ligeiramente curva. Maravilhosa.

- Sabe, Cecília – falou, enquanto cortava rapidamente a cebola em finas rodelas – acho que nunca tive nenhum segredo.

- Todo mundo tem segredos.

- Claro, claro... – e completou – Eu tenho milhares de segredos. Mas você conhece cada um deles.

- Duvido.

- Não faça isso, Cecília.

- Por que essa conversa agora?

- Você sabe... Confiança é um conceito engraçado...

Finquei com força a faca na tábua de madeira e olhei bem fundo naqueles malditos olhos azuis. Liam-me, desvendavam-me.

- Eu sei, Cecília.

Tirei-a, com delicadeza... Tão bonita, tão fiel.

- Eu também sei de todos os seus segredos. – concluiu.

Terminamos de cortar, carne e cebola.

- Você confia em mim, Rafael? – eu disse, ainda com a faca na mão.

- Claro. – respondeu-me, também enquanto segurava a dele.

- Tem certeza?

- Claro. – e apertou-a mais forte.

- Então vem, vou te mostrar.

Não sei como Rafael descobriu, nem se havia realmente descoberto... Mas lamentava. Não queria... É tão luminosa, essa faca.

- Vem, pode entrar... Pode vir, querido, confia em mim.

Estávamos, agora, na dispensa. Ele tinha uma enorme, sempre cheia de cerveja e molho barbecue. Lembro disso porque gosto muito de molho barbecue.

- Todo mundo tem segredos, Cecília.

Todo mundo, Rafael, tem direito a ter segredos.

- Eu sei.

- Você pode me contar os seus.

Sorri.

Tentei me controlar. Gostava de Rafael. Bastante. Mas ela era tão... Rápida. Mais ligeira do que nós, não havia mais nada a ser feito... Vinte centímetros adentro, bem na barriga... Ele sangrou. Vermelho. Humanos sangram vermelho.

- Corpos, Rafael, não se escondem dentro do armário.

Os olhos fitaram-me, surpresos. Devem ter suplicado piedade, ou talvez tenha sido apenas o tilintar da faca de meu amigo, ao cair de leve no chão.

Cortei-lhe a garganta, e conclui:

- Monstros, sim.



(Esse foi o último conto da matéria Oficina de Texto II, ministrada pela lindíssima e competente professora Liziane Guazina. Meio pesado, mas sejamos sinceros: a alma de quem tá leve nesse fim de semestre, pelamordeDeus?)