Muito prazer, meu nome é outono.

28.6.10

Conto sem fadas


Antes de contar mais uma vez a história que nenhuma criança escutou, mas toda menina com mais de quinze anos gostaria de viver, gostaria de fazer três observações.

Observação número um: Não era uma vez. Porque a história aconteceu muitas vezes, em inúmeros cenários, fazendo uso de centenas de diferentes personagens – nenhum mais ou menos importante, afinal, são todos os protagonistas de suas próprias vidas.

Observação número dois: A garota é extraordinária, mas não é uma princesa. O príncipe é só um idiota.

Observação número três: Como o título sugere, esse não é um conto de fadas.

Agora sim.

Era outra vez - em um lugar muito, muito próximo de você – uma menina chamada Cinderela, cuja vida era uma bagunça nada bonita. Sua mãe morreu quando ela era nova demais para se lembrar, e seu pai casou-se novamente com uma moça extremamente bonita por fora e por dentro.

Infelizmente, o pai de Cinderela também faleceu, e sua madrasta provou ser feia. Por fora e por dentro. Engordou 150 kg com a maldade que consumia em meio aos doces e - não satisfeita - fazia Cinderela lavar, passar, cozinhar e varrer para ela e suas igualmente gordas filhas.

É claro que essa situação não durou muito tempo. Cinderela era bonita e esperta demais pra ficar submetida às maldades da madrasta. Entretanto, por agora, não sabia o que fazer, ou por onde começar. Mas ela ia dar um jeito... Amanhã.

Todo fim de tarde, depois que havia terminado os seus afazeres, Cinderela ia assistir ao por do sol enquanto bebia Martinis preparados com gim barato. O luxo e o lixo. Aquele era o fundo do poço. Felizmente, quando se atinge o fundo do poço não dá pra descer mais. Ou você fica parado, ou arranja forças pra subir. Mas, com a recente morte do pai que ela tanto amara, Cinderela não tinha forças pra subir. Preferia beber e curtir todas as desgraças que já tinham acontecido a ela.

Ele a observava todos os dias. A garota mais triste que já segurou um Martini. Mas como era maravilhosa! Precisava tê-la, conhecê-la. Mas como exatamente faria isso? Ela já devia estar apaixonada. Afinal, se não é de amor, porque chora uma mulher? Chega por hoje. Precisa trabalhar. As espadas do príncipe não iriam ser amoladas sozinhas.

E a história fica assim por vários meses. Ela afogando as mágoas nas gotas de álcool, ele imaginando quem era o imbecil que a fazia chorar dessa maneira. Nunca se falaram.

Até que, num belíssimo dia, o príncipe resolveu que precisava transar. Digo, casar. E ainda não inventaram um jeito melhor de ser dar bem do que meninas inseguras, bebida de graça e objetos brilhantes. Ora, meninas inseguras estão por aí em cada esquina, e a coroa de diamantes e rubis não saía da sua cabeça desde que a ganhara (um dia depois do grandissíssimo-filho-da-puta-de-seu-pai morrer de enfarte na cama com aquela-que-não-era-a-sua-mãe). Filho de peixe, peixinho é. Faltava o open bar.

Então, nosso grandíssissimo-príncipe-louro-burro decidiu perguntar ao conselheiro real a melhor maneira de distribuir bebida de graça por todo o reino. O conselheiro, após três dias de árdua reflexão, contou ao príncipe sua grande idéia de fazer uma festa. O príncipe concordou de imediato! Chamaram a festa de ‘baile’, marcaram-na para a próxima sexta feira, às sete da noite. Convidaram todas as garotas solteiras do reino. O príncipe estava à procura de uma nova ninfeta!

Ao ouvir a notícia, Cinderela interessou-se imediatamente. Entrada gratuita, bebida à vontade! O único inconveniente era o enormissíssimo-gostosinho-que-era-aquele-príncipe procurando por alguém pra transar. Digo, casar. Porque isso significava que as suas irmãs, decerto, iriam ao baile. Putinhas de merda. Tanto faz. A melhor parte era mesmo sair de fininho quando a gorda da madrasta já tivesse ido dormir.

Ele trabalharia de garçom. Nunca havia segurado uma bandeja na vida, mas seria pago pelo serviço. E aquele era o dinheiro que faltava para ir logo embora daquele castelo, a fim de construir seu sonho de criança: uma pequena casa no topo da colina. Depois dessa noite, ele não teria mais nada a fazer por ali. Só sentiria falta do por do sol, e de todas as suas lembranças não vividas.

Chegou o dia do baile!

As irmãs de Cinderela – e todas as outras putinhas do reino – começaram a arrumação às três da tarde. Encheram a cara de maquiagem, compraram vestidos novos, colocaram os melhores sapatos (com os maiores saltos), passaram chapinha no cabelo, penduraram argolas nas orelhas... E ficaram, por fim, um pouco menos horrorosas.

Cinderela não tinha nem saco, nem tempo pra isso. Só começou a arrumação às seis e meia, depois do por do sol. Tomou um banho rápido, secou o cabelo na toalha, passou lápis e rímel nos olhos, enfiou a calça jeans surrada, a camiseta do Kiss e calçou o all star amarelo. Só tinha dois pequenos brincos de pérola, presentes de seu pai. Única coisa que aquela gorda não tinha tomado de Cinderela. Deu uma olhada rápida no espelho antes de sair. Não gostou do que viu, mas tanto faz. O álcool não se importa com aparências.

As irmãs de Cinderela saíram de casa as dez para sete. Precisavam chegar cedo, para fazer uma entrada que chamasse atenção.

Cinderela só pôde sair às nove. Aquela madrasta macaca não ia dormir nunca! Mas não importava. A noite era uma criança, e ela não tinha hora pra voltar.

Chegou ao castelo. Não fez uma entrada espetacular, mas chamou a atenção de todos por ali. Era a menina mais bonita da festa. Até o príncipe – que não era lá muito inteligente - sabia disso. Então, o grandissíssimo-filho-da-puta-júnior sentiu-se na obrigação de jogar a ninfeta com a qual dançava na hora para o canto e ir falar com Cinderela. Péssima ideia.

- Olá, senhorita, será que você me daria a honra dessa dança?

- Aahn, pode ser daqui a pouquinho? Eu realmente esperava beber umas três doses de tequila antes de sair por aí dando pra, digo, rodopiando com alguém.

- Oh! Entendo. Mas a senhorita deveria saber que eu não sou qualquer um. Sou o príncipe desse castelo! O dono dessa festa.

- Sei, sei... Tanto faz. Olha, já falo com você, ok? GARÇOM!

- Já falo com v... Mas o que? Você sabe com quem está falando por acaso? Nenhuma garota faz isso comigo! NENHUMA! EU SOU O PRÍNCIPE!

Mas Cinderela já não estava mais ouvindo. E nem estava mais interessada. Gritou o garçom que passava com os shots e a garrafa de José Cuervo. Ele parou na hora, como se tivesse esperado a vida inteira por aquele grito.

Então a voz dela era assim? Ele não acreditava. Era sorte demais. Lugar certo, hora certa, bebida certa. O que fazer?

- Pois não, senhorita.

- Eu queria umas três doses disso daqui. Tem limão e sal?

Puta que pariu, limão e sal? Quem bebe tequila com limão e sal? Essas manias de hoje em dia...

- Lamento informar, senhorita, mas não tenho limão e sal aqui. Essa é uma iguaria tomada pura, por costume.

- Tô pouco me lixando pros costumes. Costumes costumam falhar. Você já provou tequila, limão e sal? É a segunda melhor coisa do mundo.

- Nunca provei, senhorita. Mas se a senhorita me acompanhar até a cozinha, posso providenciá-los para a senhorita.

- Senhorita, senhorita, senhorita. Não precisa de tanta formalidade. Aliás, não precisa de formalidade nenhuma. Meu nome é Cinderela. E o seu?

Explosão. Ele não podia acreditar! Ela queria saber o nome dele. O nome DELE. Fala alguma coisa! Fala alguma coisa, seu imbecil!

- E o seu? – disse Cinderela, incomodada com os 30 segundos de silêncio.

- Ah, Diego! Meu nome é Diego. Muito prazer.

- Vamos então.

- Claro, senho... Digo, Cinderela.

Ela sorriu. Ele ficou vermelho... E foram. A cozinha era um lugar enorme, escondido e movimentado. Diego teve de perguntar para cinco pessoas diferentes onde encontrar limão e sal. O armário das frutas era separado do dos temperos por cinquenta metros. Mas ele conseguiu, enfim, atender ao desejo da garota que conhecia há quinze minutos. E já amava em segredo.

- Aqui, senho... Digo, Cinderela.

- Muito obrigada, Diego. – disse Cinderela apressando-se em servir duas doses generosas. Uma para cada.

- Oh, lamento! Mas não posso beber com você. Preciso voltar ao trabalho.

- Precisa nada! Vamos lá, é só uma dose... Só pra você ver como tudo fica melhor com um pouco de limão e sal.

Diego concordou. Virou uma dose, lambeu o sal, chupou o limão e...

- UAU! Essa deve ser a melhor coisa do mundo!

- Segunda melhor – advertiu Cinderela.

Tomaram mais uma dose. E outra. E outra. E outra.

- Vamos sair daqui? – Sugeriu Cinderela em meio a risadas.

- Mas eu não posso! Preciso do dinheiro pra ir embora do castelo! Viver a vida calma e bucólica que eu sempre quis.

- Amanhã você se preocupa com isso, Diego. Sempre tem um dia a mais pra ganhar dinheiro. Oportunidades assim são únicas.

- Que tipo de oportunidades?

- Bebida boa de graça! – Disse Cinderela levantando a garrafa de José Cuervo, já pela metade.

Diego pensou, pensou, pensou...

E enquanto ele o fazia, Cinderela só sabia pensar nele. Meu Deus, como ela gostava de olhos azuis! Daqueles olhos azuis. E pele branquinha, e cabelo loiro. Meu Deus, como ela queria que ele concordasse em fugir com ela.

- Tudo bem. – Disse Diego, por fim.

Cinderela não deu tempo de ele mudar de ideia. Agarrou a mão de Diego e o levantou dali num supetão. Essa noite ia ser boa.

- Pra onde você quer ir? – perguntou Diego, que ainda não conseguira soltar a mão dela.

- Pra onde você quiser – respondeu Cinderela, desejando agarrar aquelas palavras e colocá-las de novo na sua boca.

O que tinha dado nela? Não conseguia conter esse frio na barriga, esse coração acelerando. Que saco. Será que tudo isso era tesão?

- Eu conheço um lugar! Vem comigo!

Foram.

Ele correndo na frente, mas sem soltar a mão dela por nada. Não acreditava que estava prestes a revelar o seu lugar preferido. Caramba, como queria beijá-la. Mas como o fazer? Nunca tinha saído com uma garota tão extraordinária!

Ela desejava que aquilo não acabasse nunca. O som da risada dele era uma delícia. Caramba, como queria beijá-lo. Mas como o fazer? Nunca tinha saído com um garoto tão extraordinário!

Chegaram. O topo da colina, o céu estrelado.

- Uau! – Disse Cinderela – Acho que eu nunca vi algo tão bonito e tão delicado ao mesmo tempo.

- É. Espetacular, não? – Disse Diego num suspiro.

- Sim, perfeito. Eu daria tudo pra morar aqui!

- Você só pode estar brincando.

- E porque brincaria assim? É sério. Se tivesse algum jeito de construir uma casinha pequena nesse lugarzinho, eu moraria nela. Pra sempre.

- É pra cá que eu quero vir. É pra isso que eu tô juntando dinheiro.

- Merda.

- Porque merda?

- Porque não posso mais comprar o terreno e construir a casa, né... Esse é o seu sonho. – Lamentou Cinderela.

- E porque não pode ser o seu? – Perguntou Diego.

- Você quer dizer, tipo, vizinhos de porta?

- Ou de quarto...

- Ou de cama...

Riram. Tudo era tão fácil! O assunto não acabava, os sorrisos escapavam e o mundo girava devagar. Estavam deitados um ao lado do outro, com os dedos entrelaçados. As estrelas cadentes voando acima da cabeça deles.

Podia até ser o efeito do álcool, mas ela se sentia um pouco mais retardada perto dele. Era inevitável. Ele era tão inteligente, tinha tantos planos... E ela era só uma garota com uma vida fodida.

Podia até ser o efeito do álcool, mas ele se sentia um tanto mais feliz perto dela. Era inevitável. Ela era tão divertida, vivia como se não houvesse amanhã... E ele era só um garoto com preocupações demais.

E por falar em álcool...

- Só tem mais uma dose pra cada – Disse Cinderela, olhando o restinho de líquido marrom dentro da garrafa.

- Manda ver então. Ainda tem limão e sal?

- Tem, pega.

- Acima, abajo, al cientro, adientro! – Disseram juntos, e viraram, a última dose.

- Você está errada. Essa é a melhor coisa do mundo.

- Segunda melhor.

- E qual é a primeira, então?

- Essa.

Primeiro beijo. Explosão.

- Uau. – Disse Diego.

- Uau o que? – Respondeu Cinderela.

- Isso.

Segundo beijo. Explosão.

Terceiro, quarto, quinto. Explosão, explosão, explosão.

Eles fizeram amor a noite inteira, mas não transaram. Dormiram abraçados, à luz do luar, morrendo de frio. Não queriam ir a lugar nenhum.

No dia seguinte, acordaram com uma grande dor nas costas, mas nunca se sentiram tão felizes e completos. Desceram a colina conversando, o assunto nunca acabava. Era bom estar ali. Parecia certo.

Dois meses depois, Cinderela deixou a sua casa. Levou com ela várias jóias pertencentes à sua mãe. Sua verdadeira mãe, não àquela vadia gorda. Vendeu-as no Mercado Livre. Conseguiu trinta mil dólares.

Dois meses depois, Diego pediu demissão. Levou com ele os dois mil duzentos e cinquenta e três dólares que tinha conseguido juntar nesses cinco anos de trabalho.

Eles se encontraram no topo da colina às duas e trinta e quatro. Abraçaram-se, beijaram-se, rodopiaram, caíram, riram. Finalmente o sonho virara realidade.

Começaram a construção no dia seguinte, terminaram-na sete meses depois. Nesse meio tempo, dormiram no frio, comeram animais e frutas silvestres, beberam água do rio, contaram as estrelas, assistiram ao pôr do sol. E brigaram, xingaram, odiaram um ao outro. Tiveram crises de ciúmes, choraram... Fizeram as pazes, beberam tequila (com limão e sal) e fizeram amor (com chantilly e morangos).

Essa história aconteceu há uns trinta anos. E a casinha simples no topo da colina continua lá, com um jardim maravilhoso à sua volta e canteiros de orquídeas que florescem no verão. Cinderela e Diego continuam lá, assistindo ao pôr do sol todos os dias e às estrelas cadentes todas as noites. Devem estar no beijo de número trezentos mil e setenta e oito, e ainda sentem pequenas explosões.

E vivem felizes.

Mas não sempre felizes, nem felizes para sempre.

As brigas, as lágrimas, o ciúmes, o ódio, os xingamentos, a vontade de matar, de divorciar, de gritar continuam lá. Mas tudo se resolve – como em tudo nessas loucas histórias dessa vida louca - com muito amor, tequila, limão, sal... E sexo.

(Gabriela não sabe como terminar, porque pra ela, a história ainda nem começou)

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