Muito prazer, meu nome é outono.

7.4.11

Claramente, Clara.

São Paulo conta, hoje, com dez milhões oitocentos e oitenta e seis mil quinhentos e dezoito habitantes, quarenta e três quilômetros de engarrafamento, quatro mil duzentos e trinta e sete edifícios, quinhentos e vinte e três cafés e oitenta e quatro avenidas. Tem de tudo, um muito. E de muito, um demais. É impossível encontrar alguém por acaso no meio de tanto caos, poeira e sujeira. Não existem coincidências, só um monte de poluição e celulares. Não existe destino, tampouco estrelas cadentes. São só reuniões e aviões. E gente chata, cinza, sem graça.

Entretanto, contrariando, pela vigésima oitava vez, tudo o que João julgava ter certeza, lá estava ela. Sem querer e bem ali. Lendo Dennis Lehane, como se não fosse meia noite de sábado. Dança na Chuva, página trinta e sete. Isso é livro pras quatro e vinte de um domingo chuvoso, Clara. E ninguém toma café à noite, Clara, ainda mais nesse Café, Clara. E ninguém gosta do Lehane, Clara, cadê o seu senso crítico? E sorriu.

Claramente, Clara. Com todos os cabelos loiros, trinta e dois dentes e aquela única covinha involuntária na bochecha direita. A Clara que é um ano, dois meses e quatro dias mais velha que João. E que, portanto, tinha vinte anos, onze meses, duas semanas e três dias naquele início de sábado.

Meia noite, dois minutos, vinte e três segundos. João tem muita vontade de ficar, e vai embora. Mas, no meio do caminho, tinha uma garçonete. Tinha uma garçonete no meio do caminho. Café derramado, barulho de vidro quebrado. Qualquer um olharia pra trás. Inclusive Clara. Maldito par de olhos azuis claros, Clara. Malditos olhos que me conseguem ler a alma.

Não pode acreditar que ele estava ali. E que fingiu não enxergá-la. Filho da puta. Quebrando xícaras, e outra promessa. Também não pode acreditar que continuava tão... Tão. Demais. Não quis falar com ele. Jogou o dinheiro em cima da mesa, fechou o livro e saiu em disparada. Maldito sorriso, João. Maldito sorriso que me arranca sorrisos.

- João!

Ele sentiu as pernas se colarem ao chão. Ainda não conseguia desobedecer àquela quase ordem, àquele grito de socorro. Ela andou até ele, devagar. Ele a esperou, de novo.

- Não acredito que você não ia me cumprimentar. – ela disse, sorrindo.

- Clara, eu...

- ... não te vi. Vamos fingir que não tenha visto. E agora que já viu, vai me acompanhar até em casa, certo? Colocar o assunto em dia...

Meia noite, cinco minutos, quarenta e três segundos. Ela o nota olhando o relógio.

- Anda, ta cedo. Você ainda mora no mesmo lugar?

- Sim.

- E já usa o elevador?

- Não.

- E já pode me contar o motivo?

Três segundos de silêncio incômodo. Dois sorrisos e meio.

- Será um prazer inenarrável acompanhá-la, madame. - ele respondeu, beijando-a no rosto.

Ela ficou vermelha. Ele fingiu não reparar.

- Obrigada. – ela disse, segurando a mão dele. – Foram os meus músculos, né?

- Que músculos, Clara? Os da orelha? - ele disse, zombando.

- É, foram os meus quarenta e cinco quilos de pura força e dedicação que te impediram de falar comigo, não é? Não precisa ter vergonha, John, eles assustam qualquer um... – ela disse, sarcástica.

(Não falei contigo porque sei exatamente o que quero te dizer, Clara. O que sempre quis. Sei que é também o que você quer escutar, mas não posso. Não posso, Clara, não adianta insistir).

- Eu não sabia o que dizer. Realmente não sabia, por isso não falei. Não tinha o que falar.

(Eu também não, seu imbecil. E ainda não sei, mas estou aqui, não é? Segurando a tua mão. É só mostrar que se importa, João. Só isso. Porque é tão difícil pra você? A gente não ignora um ao outro, Johnny, isso não ta certo. Não pra gente).

- Mas eu sabia, querido. Eu sinto saudades...

(Eu amo quando você me chama de querido, Clara. Dá vontade de te chamar de docinho de coco. De dar seu nome pro amor. E aí eu lembro que não posso. Não posso, chuchu, não adianta insistir).

-... da sua avó. Como ta a dona Margarida?

(É tão bonito o seu sorriso, João. E tão mais bonito quando a gente fala nessa flor. Nessa flor fantasiada de mulher. Justamente quando eu começava a acreditar que você não podia mesmo amar ninguém, tu me apresenta sua avó. Mas só a ela, né, John? Só ela.).

- Ela ta ótima, Clara. Ótima mesmo. Foi para Paris nessa última semana, mas volta na quinta. Vou buscá-la no aeroporto. – ele disse, ainda sorrindo – E ah, Clara...

- O que, João?

- Não me chama de querido. Detesto quando você faz isso.

- É, eu me lembro, querido. – ela disse e riu. Riu alto, como sempre ria.

Ele tinha se esquecido o quanto gostava do som daquela risada. Anjos cantando. E riu também. E antes que percebessem, mais nada tinha importância. Porque estavam juntos. Juntos, de novo, por mais quinze minutos e trinta e dois segundos. Conversaram. Obama, Coldplay, café, sushi. Conversaram sobre a Apple, massas e maçãs. Sobre tudo. Menos sobre aquilo, João. Menos sobre isso, Clara.

Chegaram. Quiseram se beijar.

- Que horas são, Johnny?

- Cedo.

- Que horas, Johnny?

- Uma e um.

E riram. E quiseram se beijar.

- Sou eu, Johnny. To pensando em você. Não esquece, ta?

E ela o beijou. Na bochecha esquerda.

- Não, não esqueço.

E ele a beijou. Na bochecha direita. E foi embora.

- João!

E colou-se no chão pela segunda vez naquela noite. Pela quarta vez naquela vida.

- Oi, Clara.

Olhos. Sorrisos.

- Clara?

- Por que mesmo a gente não deu certo?

- Porque você gosta do Lehane, querida. Não posso estar com alguém com alguém que lê “Dança na Chuva”. É falta de senso crítico demais.

- Filho da puta. – ela disse, sorrindo.

***

João chegou a sua casa à uma hora, dez minutos e trinta e sete segundos. Olhou para o livro encostado na sua cabeceira. “Gone, baby, gone”. Dennis Lehane. Vinte e nove orelhas marcando suas frases favoritas. Estava tudo ali. Ela, bem ali, dobrada na página setenta e três. Fechou os olhos.

Também to pensando em você, Clara. Claramente, Clara.

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